Enquanto me perco

São horas de voltar para casa. Saída a correr, direito à paragem do autocarro. Mais um dia, com mais uma viagem de uma hora pela frente. Quem diria que esta correria seria tão cansativa? Eu adapto-me bem, mas aproveito a viagem de regresso para repensar em tudo o que fiz, disse e aprendi. Acredito que me vai dar jeito.

É altura de me desligar do mundo por uns minutos. Coloco os phones nos ouvidos, escolho o álbum que vou ouvir e começa a dança. "Let's keep it mellow for now, is that ok?" - diz o artista. Eu olho pela janela, mas por algum estranho motivo, olho em meu redor. O meu olhar continua a mexer-se, mas a minha mente fixou-se num ponto, num lugar específico. Não a vi chegar, não vi nada disto chegar. De forma naturalmente descontraída, ali estava ela, no mesmo autocarro que eu, de frente para mim. Também ela perdida nos pensamentos, também ela perdida na vontade de chegar a casa onde terá alguém há sua espera. Os nossos olhares chegam a cruzar-se por momentos, mas nada mais se cruza entre nós. Falta-me a coragem necessária para uma troca de palavras, para uma troca de lugares.

O autocarro pára. Saem pessoas, entram pessoas. O autocarro arranca. Nós continuamos.

E ali estou eu, a tentar não olhar para ela, enquanto olho pela janela e observo a vida desta cidade. Ainda faltam muitas paragens até chegar a casa. Vejo o reflexo dela na janela. Ela está a sorrir. Eu não sou, certamente, o motivo daquele sorriso. Talvez seja melhor assim. Eu posso continuar no meu caminho, nos meus pensamentos, a pensar como seria se houvesse uma aproximação. Nada faço, falta-me a coragem. Só que eu continuo a ouvir aquela música, enquanto aquela vozinha misteriosa me diz "vai lá!", mas eu não sou capaz. Nem de ir, nem de mudar de música.

O autocarro pára. Saem pessoas, entram pessoas. O autocarro arranca. Nós continuamos.

Continuamos rumo ao nosso destino, mas qual é o teu destino? Eu sei o meu, ainda fica longe. Olho para as horas e conto pelos minutos que, se não houver muito trânsito, ainda tenho mais 20 minutos de viagem. Será que ela vai para o mesmo sítio que eu? Será que a voltarei a ver neste autocarro ou foi um mero acaso? Quando é que posso ter a certeza? São tantas as perguntas e nem uma simples resposta. A dúvida mata-me, faz-me viajar para sítios que eu não quero ir. Faz-me ir onde eu não acredito que um dia irei chegar e faz-me ir aos sítios onde já estive. E eu vou, por causa da dúvida. A dúvida mata-me, mas eu continuo a não ter a força suficiente para a desfazer.

O autocarro pára. Saem pessoas, entram pessoas. O autocarro arranca. Ela saiu.

Agora que saíste, deixa-me dizer-te uma coisa bem simples. Enquanto partilhámos este espaço, eu acreditei que iríamos trocar mais do que um olhar ou dois. Pensei mesmo que as coisas podiam ter tido um ponto de partida, ali, naquele instante. Não tiveram, mas tudo bem. O que não está bem, é o facto de eu ter ficado a pensar nisto e não saber no que tu ias a pensar. Provavelmente, não pensaste uma única vez nisto que aqui escrevo, porque quem, como tu, iria pensar nisso? Poucas foram as certezas que ganhei, mas sei que o autocarro vai parando e arrancando. Eu vou viajando e divagando. Vou pensando nas formas em como vou escrever o que acabou de acontecer.

O autocarro pára. É a última paragem. Amanhã gostava de ver-te outra vez. Agora é a minha vez de sair e continuar a caminho de casa.


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